A PROPÓSITO DO INÍCIO DO CICLO DE CINEMA NA SOARES “SEIS MESES, SETE FILMES” ACTIVIDADE DO ÂMBITO DA BIBLIOTECA
Sem me querer alongar,
quero deixar a minha modesta homenagem à iniciativa e ao cinema,
fazendo votos para que venham até às próximas sessões todos os
que se revirem nas palavras que deixo no texto que escrevi na Páscoa
de 2009 e que foi publicado, salvo erro, no Blogue “O Caniço da
Soares”. Um abraço a todos os interventivos espectadores do
magnífico filme “A Palavra”/ Ordet de Carl Th. Dreyer que
iniciou “a temporada”.
O
CINEMA PARAÍSO “mora” em VILA NOVA DE MILFONTES
E não
se trata de nenhum Giuseppe Tornatore , imortalizando o “seu”
Alfredo e o “seu” Totó/ Salvatore ou a sua inesquecível Elena,
numa pequena, pobre e ignorada terrinha do sul de Itália da II
Guerra e do após-guerra…
foto de Luís Guerreiro CM de Odemira |
Mas há
nele o mesmo brilhozinho nos olhos, igual olhar apaixonado enquanto
explica os truques, os desenrascanços, as mil e uma formas de
espalhar, pelas recônditas aldeias alentejanas, o seu amor generoso
pela “sétima arte”. António Feliciano é um septuagenário
muito bem conservado que se afirma capaz de celebrar os seus 50 anos
de cinema no próximo Dezembro de 2011, “se lá chegar”…E
haverá de, pois com certeza. Fundou há mais de 30 anos um cineclube
em Odemira que já fechou. E nem admira: hoje compra-se DVD’s a
retalho, pirateados e por tuta e meia, em feiras, às escâncaras!
O meu
conhecimento deste magnifico “achado” veio das mini-férias da
Páscoa em Vila Nova de Milfontes, mendigando um pouco de sol, um
pouco de mar azul, nas lonjuras quilométricas de uma luminosidade de
andorinhas. Ali, onde a pretexto da Feira de Turismo, pequena mostra
dos produtos da região, dos vinhos às ervas, do turismo rural ao
artesanato e à gastronomia, há cante, há burricadas, animação de
rua, teatro e cinema ao ar livre. E é deste que se trata agora. No
largozinho da Vila, projectando na frontaria da velha igreja matriz
azul e branca, onde se colocou um largo pano branco a servir de ecrã,
e logo após o sol-pôr, com umas cadeiras de plástico para quem
quiser “entrar” ou “ficar”, eis os filmes que valem a pena.
Para quem teima desafiar os frios da noite primaveril ou passa rua
abaixo e deita o olho espantado pelo insólito da cena, ou. Na
Sexta-feira Santa o “Fame” e no Sábado “Julie & Júlia”,com
essa cada vez mais prodigiosa Meryl Streep. Tudo muito profano e
distante da quadra litúrgica ou talvez não! Que noutras épocas se
haveria de passar algum dos grandes êxitos, em cinemaskope, de Cecil
B. DeMille,”Os 10 Mandamentos”, obrigatórios na Semana Santa, ou
o inevitável “Ben-Hur”, com um Charlton Heston, de músculos de
aço, pronto a salvar o seu povo eleito!
Proprietário de uma sala (“mono-sala”, como gosta de frisar,
para se distanciar do conceito actual das salas multiplex instaladas
nos centros comerciais que têm vindo a crescer como cogumelos por
este país fora), o Cinema Girasol, onde promove sessões comerciais,
com bilhetes ao custo de 4 euros, em ambiente climatizado,
confortável e sempre acolhedor para o cinéfilo, seja turista, seja
filho da terra, o amigo Feliciano é um verdadeiro “Senhor Cinema”.
Não só porque a sua conversa deixa depreender uma vastíssima
cultura cinematográfica, como se lhe desenham constelações de
metáforas no rosto,e nele se vão construindo, de súbito, os
estúdios de uma qualquer Cinecittà ou de uma Paramount. Ele vive e
respira a sétima arte e preocupa-se com o seu futuro, considerando
que os custos hão-de impedir a generalização do 3D e que as salas
de bairro estão condenadas pela voragem do vídeo e dos novos
modelos de tv-cabo. E atreve-se, contra ventos e marés, a ser uma
espécie de ONG (organização não-governamental) do cinema, com a
sua carrinha de projeccionista, onde transporta toda a parafernália
que usa por essas aldeias e vilas Alentejo fora, em dias de feira ou
de romaria, crianças à borla, velhos desdentados e tristes,
mendigando imagens de um sorriso ou de algum beijo jovem há muito
perdido! Como me saltou à lembrança, por razões de proximidade
geográfica e doutras, o teatro La Barraca de Federico Garcia
Lorca,saltaricando de terra em terra.
Mas
volto à carga porque, como diz Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em
“Ecrã Global”: «A arte do cinema é, primeiro e antes de tudo,
uma arte de consumo de massas, sem outra ambição que não seja a de
divertir, de dar prazer, de permitir uma evasão fácil e acessível
a todos, ao contrário das obras vanguardistas, herméticas e
provocadoras , destinadas a revolucionar o velho mundo para fazer
nascer o “homem novo”. O objectivo é oferecer novidades de
produção sistemática que sejam acessíveis e possam distrair o
maior número de pessoas possível. É aí, precisamente, que se
encontra a modernidade irredutível do cinema.» (pgs. 38/9, Ed. 70).
Assim
sendo, caro amigo Feliciano, continue o seu projecto existencial,
essa sua missão laica de espalhar a “fé cinéfila” numa
actividade que ou entra pela vida dentro ou cuja dimensão forma com
ela uma tal simbiose que só o Cinema Paraíso foi capaz de
evidenciar na perfeição mais absoluta. Como sumo-sacerdote (no bom
sentido, entenda-se), invejo-lhe o facto de ter já alguns aprendizes
que lhe seguem os passos e lhe hão-de continuar a obra. Porque tenho
para mim, em segredo, que a sétima arte foi, é e será sempre uma
“fábrica de sonhos” que nunca abrirá falência, glosando a
repetida fórmula shakespeariana “We are such stuff as the dreams
are made on” (Hamlet).
José
Melo (prof. de Filosofia na Escola Artística Soares dos Reis –
Porto)