"Não queria prender-se, dizia, e era verdade. Mas não queria prender-se
porque, então, seria confessar a inutilidade do que vivera. Que ganhara
em fazer tão largo rodeio para, afinal, vir dar ao caminho por onde
seguiam aqueles que resolutamente quisera deixar? "Queriam-me casado,
fútil e tributável?", perguntara Fernando Pessoa. "É isto que a vida
quer de toda a gente?", perguntava Abel.
O sentido oculto da vida..." Mas o sentido oculto da vida é não ter a vida sentido oculto nenhum." Abel conhecia a poesia de Pessoa. Fizera dos seus versos uma outra Bíblia. Talvez não os compreendesse completamente, ou visse neles o que lá não estava. De qualquer maneira, e embora desconfiasse de que, em muitos passos, Pessoa troçava do leitor e que, parecendo sincero, o ludibriava, habituara-se a respeitá-lo, até nas suas contradições. E, se não tinha dúvidas acerca da sua grandeza como poeta, parecia-lhe, por vezes, especialmente naqueles dias absurdos de desencanto, que na poesia de Pessoa havia muito de gratuitidade. "E que mal há nisso?"-pensava Abel.-"Não pode a poesia ser gratuita? Pode, sem dúvida, e o mal não é nenhum. Mas, o bem? Que bem há na poesia gratuita? A poesia é, talvez, como uma fonte que corre, é como a água que nasce da montanha. simples e natural, gratuita em si mesma. A sede está nos homens, a necessidade está nos homens, e é só porque elas existem que a água deixa de ser desinteressada. Mas será assim a poesia? Nenhum poeta, como homem, é simples e natural. E Pessoa menos que qualquer outro. Quem tiver sede de humanidade não a irá matar nos versos de Fernando Pessoa: será como se bebesse água salgada. E, contudo, que admirável poesia e que fascinação! Gratuita, sim, mas isso que importa se desço ao fundo de mim e me acho gratuito e inútil? E é contra esta inutilidade - a inutilidade da vida, que só ela o interessa - que Silvestre protesta. A vida deve ser interessada, interessada a toda a hora, projetando-se para lá e para além. Assistir é nada. Presenciar é estar morto."